GRÃO DE MALÍCIA

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Miramar, Norte, Portugal
GRÃO DE MALÍCIA … poemas escritos de desejos e divagações... onde está a poetisa... que vai escrever os poemas memórias de sentidos tidos… onde está a poetisa...que escreve poemas, nua ao pé da cama, que os interrompe para beber inspiração? … sou apenas quem está mesmo por detrás de ti... com a boca colada ao teu ouvido, segredando-te pequenas coisas que tu sentes...de olhos fechados. ana barbara sanantonio

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

MUSA RENASCENTISTA




Sábado, 23H30, do dia 9 de Agosto de 2008, Rui deitava na sua cama uma musa desconhecida. Raptara-a a meio da tarde, indo buscá-la perto do mar, levando-a para as montanhas onde habitava, numa viagem silenciosa entre sorrisos tímidos e mãos que se afagavam de quando em vez, sem nada questionarem de passados carregados de traumas e de infelicidade, estórias escritas pelo punho da vida, em duas vidas completamente diferentes e ao mesmo tempo tão iguais nos seus percursos afectivos. A sua condição de médico trazia-lhe ao contacto visual muitas mulheres, nas quais ele procurava a sua musa renascentista do século XXI, alguém parecido com aquelas musas da pintura das escolas de Bolonha, de Ferrara, Florentina, Sienesa, Milanesa, onde aprenderam alguns dos maiores artistas de todos os tempos: Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano, Tintoretto, Veronese, todos aprendizes de Andrea del Verrocchio, um pintor cativante, capaz de telas extravagantes e de grande teor emocional. Tímido, procurava a consumação do amor, na segunda fase das três idades, jovem, adulto a caminhar para velho. Já vivera a sua juventude carregada de grandes paixões, e agora adulto, procurava o seu momento de amor, procurava o encontro que tinha deixado para trás, a paixão física, uma história de amor mal resolvida, a separação, e sonhava com o reencontro, a vontade de divagar sobre um passado em busca do que não disse, do que não fez, do que não sentiu, do que não teve, do que queria. A sua vida presente era um elogio ao tempo, uma busca imperfeita de sentidos quase todos gastos a mergulhar em sessões de psicanálise, procurando não sabendo bem o quê, um ideal de vida livre e afeita às maiores loucuras, sem compromissos nem responsabilidades por parte da alma, apenas consentindo a sua razão e o seu coração muito arrumadinhos. Quase como a mecânica quântica, mesmo que pudesse saber a velocidade dos seus pensamentos corpúsculos, mas sem saber onde eles estavam, e quando os descobrisse não saberia mais qual a sua velocidade, a sua memória funcionaria assim, projectada no seu pensamento já era passado, da qual breve esquecia como chegara até si, tão momentâneos que eram esses pensamentos. Era um homem bonito, atractivo, educado, simpático, cavalheiro, capaz de despertar grandes paixões em mulheres elegantes, dóceis, cultas, sensíveis, musas de uma geração carregada de adornos e consumismo desenfreado, seguidoras das últimas modas, aventureiras, sedutoras, o feminino em todas as suas extravagâncias, no pedestal de toda a luxúria. Onde não cabia a sua musa de formas bem cheias, carnes bem duras, corpo bem nutrido, formas redondas a puxar para o XL, corpo a ter sempre onde agarrar, largo e protuberante, um imenso mar de fartura e deleite numa pele branca e gorda, já um tanto flácida pela idade, pelo descuido pessoal, pela insatisfação de todos os sentimentos deixados ao acaso dentro de si. Como era possível, em pleno século XXI, movido por uma elegância de modas e luxúria de formas, alguém viver para amar um corpo avantajado e desleixado? Rui procurava tudo isso, no corpo de cada mulher que ele perscrutava, descobrindo-lhe os seus contornos mais deformados, todas as linhas imperceptíveis, todos os traços gastos pela idade, por todas as intempéries de suas vidas, procurava cada osso abafado por quilos de banhas, cada nervo tortuoso estrangulado por gordura acumulada, cada célula mutante corrompendo a elegância, todo um corpo entregue nas suas mãos hábeis de sedutor. Com o tempo habituara-se a olhar aquelas mulheres com o carinho que as desunira de si mesmas, atirando-as para dores que não eram senão uma descompensação do seu ego arrasado por toda uma disformidade que as impunha a uma vida sem paixão. Doía-lhes a alma por todo o seu corpo entregue ao abandono. Não queriam ser musas de uma geração que as renegava dos seus limites de substância. Eram gordas, ainda que belas, porque eram mais cheiinhas, eram feias. Mas para aquele homem, sinónimo de beleza era mesmo substância. Ele só queria uma oportunidade de poder mostrar a alguém, nessas condições, que todo o seu corpo valia por toda a forma que tivesse, porque dentro dele haveria uma alma e um coração capaz de se deixar amar tal qual ele era.

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