GRÃO DE MALÍCIA

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Miramar, Norte, Portugal
GRÃO DE MALÍCIA … poemas escritos de desejos e divagações... onde está a poetisa... que vai escrever os poemas memórias de sentidos tidos… onde está a poetisa...que escreve poemas, nua ao pé da cama, que os interrompe para beber inspiração? … sou apenas quem está mesmo por detrás de ti... com a boca colada ao teu ouvido, segredando-te pequenas coisas que tu sentes...de olhos fechados. ana barbara sanantonio

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

MUSA RENASCENTISTA




Eram quase as três da tarde. O tempo decidira parar naquele relógio antigo, sobre o tampo da chaminé esverdeada, de um mármore vindo do interior de São Paulo, no Brasil, importado por um comerciante de granitos do centro do país, era uma peça única, embelezando a sala recheada de móveis tirados de sótãos esquecidos, comprados aos melhores antiquários, alguns contavam mais histórias do que a própria Sherazade, sentia-se neles o odor a sentimentos perdidos e uma nostalgia de mãos femininas cuidando deles.
Bárbara esperou que o telefone tocasse. Não queria ser a primeira a chegar ao encontro marcado, insistentemente seduzida ao longo daquela semana, acedeu a encontrar-se com aquele desconhecido porque a sua vida estava como que parada no tempo, agarrada, dependurada nos ponteiros do velho relógio sobre a chaminé, já não era o tempo que a tinha, mas ela que tinha o tempo encravado em si, sentindo que precisava de fazer alguma coisa, fosse o que fosse, uma loucura qualquer que a tirasse daquele marasmo que a prendia ao chão, sem que conseguisse mover-se, sentia-se morta por dentro, sentia-se abandonada, infeliz, triste, insatisfeita.
Há uma semana que tinha recebido uma mensagem para se encontrar pessoalmente com um desconhecido. Um homem que a seduzia, que a mimava de palavras, que a acariciava de sussurros ao telefone, provocando-a até à exaustão, explorando as suas fraquezas e fantasias de mulher mal amada, só, mas apesar de ser uma sibila, uma profetisa, uma alma muito intuitiva, deixou-se ir, deixou-se conquistar por aquele sedutor desconhecido, ignorando todos os avisos da sua alma protectora.
Tocou o telefone avisando a chegada de uma sms, dando-lhe conta que ele estaria no bar do hotel à sua espera. E ela sem pressas, vestida para matar, tinha escolhido a pele de uma chita, a fêmea solitária das pradarias e das savanas, apareceu entrando no hall, segura e confiante, de encontro ao predador que a esperava.
Levava com ela todo o historial daquela alma que a perturbava sem cessar, atraindo-a com mensagens eróticas e a sua voz sensual e o seu riso ingénuo e provocador.
Ela sabia do seu lado pouco arrumado na sua consciência, das suas aventuras com mulheres casadas e divorciadas, dos seus encontros com jovens tímidos e inocentes, da sua personalidade mal resolvida no interior de si mesmo, da sua carência de afecto, das traições, dos desencantos, da raiva incontida, das lágrimas de injustiça choradas por dentro, dos ataques perigosos de que era alvo, porque apenas era alguém, vitima de alguém, dependente de uma vulva e de um membro, contrariado pela vida e pela sociedade que o rodeava.
Ela aceitou que ele a raptasse para a sua toca. O inconsciente surpreendido por uma surpresa do destino, vadiar por paixão e sedução, sentir-se atraída por um homem que nunca tinha conhecido pessoalmente, e que num ápice a roubava de tudo e de todos, a levava com ele abusando de todas as liberdades, só para amar por um segundo, dar-lhe na cama tudo o que um homem pode dar a uma mulher, ainda que desconhecidos um do outro, permitir-se seduzir e ser seduzido, fazer sexo até à exaustão, permitir olhos, nariz, boca, lábios, língua, mãos, pele com pele, pêlo com pêlo, tacto com tacto, carne com carne, pénis e vagina unidos num só corpo, e as almas a desejarem tudo e os corpos a fazerem todas as vontades, e a razão e o coração completamente amordaçados para não perturbarem aquele encontro fatal.
Ali estava ele. Traindo o seu jovem amigo, a mulher casada e a mulher divorciada, com a mulher mais desejada, mais querida, mais idealizada, a mulher musa renascentista, tirada de um quadro de Ticiano, a sua Vénus de Urbino, de 1538, retratando a deusa do amor, nua de cabelos encaracolados, ainda pudica, de olhar etéreo e colo fértil, escondendo o seu monte de Vénus com a sua mão, numa atitude aprisionada e subserviente, sobre o divã.
Já na sua cama, amou-a loucamente com a sua língua, o seu membro, a sua boca, os seus lábios, sem nunca entregar a sua alma, friamente estampado no seu rosto, coberto pela escuridão da noite, o medo e a vingança, de olhos fechados entregou-se nos braços da mulher musa, sem qualquer sentimento, com todos os seus sentidos atados, sem consentimento e consentido, vibrou os prazeres da carne, pulsante e túrgido, afogado em delírio fulgente, duro como uma pedra, frio como o mármore, onde o preço pago pelo prazer é a dor, o castigo temperando a nudez e o erotismo, a obsessão de ter e de se dar somente por desejo.
Mas os fantasmas do presente continuam lá. Já não é o passado que o atormenta, o futuro que a angústia é a presença daquele momento que aturdido o atira para a dúvida da sua existência como homem, macho que copula atraindo a fêmea, mesmo não sabendo ao certo o que quer da sua vida, ainda consegue sentir o sabor e o cheiro da musa que se entregou nos seus braços, tentando deixar entranhada na sua alma o caminho que o leve a todas as promessas do renascimento.

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